Querer unicamente a Deus no seguimento do Cristo pobre e crucificado!
O Tau
Há certos sinais que revelam uma escolha de vida. O TAU, um dos mais famosos símbolos franciscanos, hoje está presente no peito das pessoas num cordão, num broche, enfeitando paredes numa escultura expressiva de madeira, num pôster ou pintura. Que escolha de vida revela o TAU? Ele é um símbolo antigo, misterioso e vital que recorda tempo e eternidade. A grande busca do humano querendo tocar sempre o divino e este vindo expressar-se na condição humana.
Horizontalidade e verticalidade. As duas linhas: Céu e Terra! Temos o símbolo do TAU riscado nas cavernas do humano primitivo. Nos objetos do Faraó Achenaton no antigo Egito e na arte da civilização Maia. Francisco de Assis o atualizou e imortalizou. Não criou o TAU, mas o herdou como um símbolo seu de busca do Divino e Salvação Universal.
Tau, sinal bíblico
Existe somente um texto bíblico que menciona explicitamente o TAU, última letra do alfabeto hebraico, Ezequiel 9, 1-7: “Passa pela cidade, por Jerusalém, e marca com um TAU a fronte dos homens que gemem e choram por todas as práticas abomináveis que se cometem”. O TAU é a mais antiga grafia em forma de cruz. Na Bíblia é usado como ato de assinalar. Marcar com um sinal é muito familiar na Bíblia. Assinalar significa lacrar, fechar dentro de um segredo, uma ação. É confirmar um testemunho e comprometer aquele que possui o segredo. O TAU é selo de Deus; significa estar sob o domínio do Senhor, é a garantia de ser reconhecido por Ele e ter a sua proteção. É segurança e redenção ao voltar-se para o Divino, sopro criador animando nossa vida como aspiração e inspiração.
Cruz de São Damião
O Crucifixo de São Damião foi pintado no século XII por um desconhecido artista da Úmbria, região da Itália. A pintura é de estilo romântico, sob clara influência oriental: o pedestal sobre o qual estão os pés de Cristo pregados separadamente; e de influência siríaca: a barba de Cristo; a face circundada pelo emoldurado dos cabelos; a presença dos anjos e cruz com a longa haste segurada na mão, por Cristo (só visível na pintura original), no alto, encimando a cruz.
O Crucifixo original de São Damião está guardado com grande zelo pelas irmãs Clarissas, na Basílica de Santa Clara de Assis, e é visitado por estudiosos, devotos e turistas do mundo todo. É um monumento histórico franciscano e universal.
Outros dados
Sem o pedestal, o Crucifixo original mede dois metros e dez centímetros de altura e um metro e trinta centímetros de largura.
A pintura foi feita em tela tosca, colada sobre madeira de nogueira.
Naquele tempo, nas pequenas igrejas, o Santíssimo não era conservado, isto é, a Eucaristia não era guardada, mas, consumida no dia. Por isso, supõe-se que Crucifixo foi pendurado no ábside sobre o altar da capela, no centro da Igreja.
Provavelmente o Crucifixo permaneceu na Igreja de São Damião até que as Irmãs Pobres, em 1257, o levaram consigo à nova Basílica de Santa Clara. Guardaram-no no interior do coro monástico por diversos séculos. No ano de 1938, a artista Rosária Alliano restaurou o Crucifixo com grande perícia, protegendo-o inclusive contra qualquer deterioração.
Desde 1958 ele está sobre o altar, ao lado da capela do Santíssimo, na Basílica de Santa Clara, protegido por vidro.
Monte Alverne
Na Toscana, existe um monte rochoso e coberto de bosques, inacessível e sublime, com fendas horríveis cobertas de musgo e de frescor. Há muitos anos, o conde Orlando de Chiusi lho doara, em sinal de devoção, para que se servisse dele nos seus encontros com Deus.
Em agosto de 1224 subiu Francisco com alguns irmãos os mil e trezentos metros do Monte Alverne. É difícil ao turista que sobe hoje de automóvel esse monte, imaginar o que significava para Francisco, já
esgotado, viajar a lombo de burro pelos caminhos sinuosos até chegar ao cimo da montanha, onde ela parece abrir-se subitamente, oferecendo, do alto duma rocha íngreme, vista para os vales lá embaixo. Cuidados, privações e enfermidades tinham enfraquecido o corpo desse homem de quarenta e dois anos. Francisco sempre se sentiu à vontade nos cumes das montanhas. Desejava afastar-se das últimas preocupações a respeito de sua Ordem, das decepções e da falta de compreensão. Pediu que o levassem a uma abertura na rocha, onde ainda se vê uma grade no lugar em que ele dormia; pode-se supor que não foi mudada muita coisa naqueles blocos de pedra úmidos e mofados.
Ano após ano, penetrava cada vez mais na essência de Deus até chegar à mais elevada forma que se possa imaginar na terra: à contemplação mística de Deus. É esta contemplação mística que ele experimentará de uma forma única na solidão do Alverne, pelo espaço de quarenta dias (de 15 de agosto até 29 de setembro, festa de São Miguel). Ele se retira do convívio de seus irmãos e só o irmão Leão pode lhe levar diariamente um pouco de pão e água durante a sua viagem mística ao invisível.
(Do livro Francisco de Assis, Profeta de Nosso Tempo, de N. G. Van Doornik)
Estigmas de São Francisco
“Um dia, no princípio de sua conversão, ele rezava na solidão e, arrebatado por seu fervor, estava totalmente absorto em Deus e lhe apareceu o Cristo Crucificado. Com esta visão, sua alma se comoveu e a lembrança da Paixão de Cristo penetrou nele tão profundamente que, a partir deste momento, era-lhe quase impossível reprimir o pranto e suspiros quando começava a pensar no Crucificado”.
E rezava:
“Ó Senhor, meu Jesus Cristo, duas graças eu te peço que me faças, antes de eu morrer: a primeira é que, em vida, eu sinta na alma e no corpo, tanto quanto possível, aquelas dores que tu, doce Jesus, suportaste na hora da tua dolorosa Paixão.
A segunda, é que eu sinta, no meu coração, tanto quanto for possível, aquele excessivo amor, do qual tu, filho de Deus, estavas inflamado, para voluntariamente suportar uma tal Paixão por nós pecadores”.
Da Legenda Menor de São Boaventura, Capítulo 6
“Francisco era um fiel servidor de Cristo. Dois anos antes de sua morte, havendo iniciado um retiro de Quaresma em honra de São Miguel num monte muito alto chamado Alverne, sentiu com maior abundância do que nunca a suavidade da contemplação celeste. Transportado até Deus num fogo de amor seráfico, e transformado por uma profunda compaixão n’Aquele que, em seus extremos de amor, quis ser crucificado, orava certa manhã numa das partes do monte.
Aproximava-se a festa da Exaltação da Santa Cruz, quando ele viu descer do alto do céu, um serafim de seis asas flamejantes, o qual, num rápido voo, chegou perto do lugar onde estava o homem de Deus. O personagem apareceu-lhe não apenas munido de asas, mas também crucificado, mãos e pés estendidos e atados a uma cruz. Duas asas elevaram-se por cima de sua cabeça, duas outras estavam abertas para o voo, e as duas últimas cobriam-lhe o corpo.
Tal aparição deixou Francisco mergulhado num profundo êxtase, enquanto em sua alma se mesclavam a tristeza e a alegria: uma alegria transbordante ao contemplar a Cristo que se lhe manifestava de uma maneira tão milagrosa e familiar, mas ao mesmo tempo uma dor imensa, pois a visão da cruz transpassava sua alma como uma espada de dor e de compaixão.
Aquele que assim externamente aparecia o iluminava também internamente. Francisco compreendeu então que os sofrimentos da paixão de modo algum podem atingir um serafim que é um espírito imortal. Mas essa visão lhe fora concedida para lhe ensinar que não era o martírio do corpo, mas o amor a incendiar sua alma que deveria transformá-lo, tornando-o semelhante a Jesus crucificado.
Após uma conversação familiar, que nunca foi revelada aos outros, desapareceu aquela visão, deixando-lhe o coração inflamado de um ardor seráfico e imprimindo-lhe na carne a semelhança externa com o Crucificado, como a marca de um sinete deixado na cera que o calor do fogo faz derreter.
Logo começaram a aparecer em suas mãos e pés as marcas dos cravos. Via-se a cabeça desses cravos na palma da mão e no dorso dos pés; a ponta saía do outro lado. O lado direito estava marcado com uma chaga vermelha, feita por lança; da ferida corria abundante sangue. Frequentemente, molhando as roupas internas e a túnica. Fui informado disso por pessoas que viram os estigmas com os próprios olhos.
Os irmãos encarregados de lavar suas roupas, constataram com toda segurança que o servo de Deus trazia, em seu lado bem como nas mãos e pés, a marca real de sua semelhança com o Crucificado”.
Tomás de Celano – Vida II, 211
“Francisco já tinha morrido para o mundo, mas Cristo estava vivo nele. As delícias do mundo eram uma cruz para ele, porque levava a cruz enraizada em seu coração. Por isso fulgiam exteriormente em sua carne os estigmas, cuja raiz tinha penetrado profundamente em seu coração”.
Outros textos: 1Cel, 94; Legenda Maior, 13,35,69.
Porciúncula
Diversos textos, das assim chamadas “fontes franciscanas”, falam do sentido e do valor que este lugar passou a ter na vida de São Francisco.
• “Vendo o bem-aventurado Francisco que o Senhor queria aumentar o número de seus frades, disse-lhes um dia: ‘Caríssimos irmãos e meus filhinhos, vejo que o Senhor quer fazer crescer a nossa família. Parece-me que seria prudente e próprio de religiosos irmos pedir ao Senhor Bispo ou aos cônegos de S. Rufino ou ao abade do mosteiro de São Bento uma igreja pequena e pobre onde os frades possam recitar as horas
e, ao lado, uma casa pequena e pobre, de barro e de vimes, onde os frades possam descansar e fazer o que lhes for necessário. O lugar que agora habitamos já não é conveniente e a casa é exígua demais para nos abrigar, visto que aprouve ao Senhor multiplicar-nos. … Foi então apresentar ao bispo o seu pedido, que lhe respondeu assim: “Irmão, não tenho igreja para vos dar”. Dirigiu-se em seguida aos cônegos de S. Rufino. Estes deram-lhe a mesma resposta. Foi dali ao mosteiro de São Bento do Monte Subásio. Falou ao abade como fizera ao bispo e aos cônegos, relatando-lhe a resposta que deles obtivera. O abade compadecido, depois de se aconselhar com os seus monges, resolveu com eles, como foi da vontade de Deus, entregar ao bem-aventurado Francisco e seus frades a igreja de Santa Maria da Porciúncula, a mais pobre que eles possuíam. Para o bem-aventurado Francisco era tudo quanto de há muito desejava. … Não cabia em si de contente, com o benefício recebido: porque a igreja era dedicada à Mãe de Cristo; porque era muito pobre; e também pelo nome que era conhecida. Era com efeito chamada de Porciúncula, presságio seguro de que viria a ser cabeça e mãe dos pobres frades menores. O nome de Porciúncula tinha sido dado a esta igreja por ter sido construída numa porção acanhada de terreno que de há muito assim era chamada” (Legenda Perugina, cap. 8).
• “Depois que o santo de Deus trocou de hábito e acabou de reparar a Igreja de São Damião, mudou-se para outro lugar próximo da cidade de Assis, … chamado Porciúncula, onde havia uma antiga igreja de Nossa Senhora Mãe de Deus, mas estava abandonada e nesse tempo não era cuidada por ninguém. Quando o santo de Deus a viu tão arruinada, entristeceu-se porque tinha grande devoção para com a Mãe de toda bondade, e passou a morar ali habitualmente. No tempo em que a reformou, estava no terceiro ano de sua conversão” ( T.Celano, Vida I, cap. 9,21).
• “Embora o Seráfico Pai soubesse que o reino dos céus é estabelecido em todos os lugares da terra… sabia, no entanto, por experiência, que Santa Maria dos Anjos havia sido contemplada com bênçãos especiais… Por isso recomendava sempre os frades: ‘Meus filhos, tende cuidado de jamais abandonar este lugar. Se vos expulsarem por uma porta, entrai pela outra. Este lugar é sagrado, morada de Cristo e da Virgem Maria, sua bendita Mãe. Aqui, quando éramos apenas um pequeno número, o bom Deus nos multiplicou. Aqui ele iluminou a alma destes pequeninos com a luz de sua sabedoria, abrasou a nossa alma com o fogo de seu amor” (Espelho da Perfeição, cap. 83).
• “Neste tempo nasceu a Ordem dos Frades Menores, multidão de homens que, então, começou a seguir o exemplo do Seráfico Pai. Clara, esposa de Cristo, recebeu nesta igreja a tonsura, despojando-se das pompas do mundo para seguir a Cristo. Aqui, para Cristo, a Santa Virgem Maria gerou os frades e as Pobres Damas, e, por meio deles, deu Cristo ao mundo. Aqui, estrada larga do mundo antigo tornou-se estreita e a coragem dos que foram chamados tornou-se maior. Aqui foi composta a Regra, a santa pobreza foi reabilitada, a vaidade humilhada e a cruz alçada às alturas. Se algumas vezes o Seráfico Pai sentiu-se conturbado e aflito, neste lugar reanimou-se, o seu espírito recuperou a paz interior. Aqui desaparece toda a dúvida. Por fim, aqui se concede aos homens tudo que o pai pediu por eles” (Espelho da Perfeição, cap. 84).
Gréccio e o Presépio
Sua maior intenção, seu desejo principal e plano supremo era observar o Evangelho em tudo e por tudo, imitando com perfeição, atenção, esforço, dedicação e fervor os “passos de Nosso Senhor Jesus Cristo no seguimento de sua doutrina”. Estava sempre meditando em suas palavras e recordava seus atos com muita inteligência. Gostava tanto de lembrar a humildade de sua encarnação e o amor de sua paixão, que nem queria pensar em outras coisas.
Precisamos recordar com todo respeito e admiração o que fez no dia de Natal, no povoado de Greccio, três anos antes de sua gloriosa morte. Havia nesse lugar um homem chamado João, de boa fama e vida ainda melhor, a quem São Francisco tinha especial amizade porque, sendo muito nobre e honrado em sua terra, desprezava a nobreza humana para seguir a nobreza de espírito. Uns quinze dias antes do Natal,
São Francisco mandou chamá-lo, como costumava, e disse: “Se você quiser que nós celebremos o Natal de Greccio, é bom começar a preparar diligentemente e desde já o que vou dizer. Quero lembrar o menino que nasceu em Belém, os apertos que passou, como foi posto num presépio, e ver com os próprios olhos como ficou em cima
da palha, entre o boi e o burro”. Ouvindo isso, o homem bom e fiel correu imediatamente e preparou o que o santo tinha dito, no lugar indicado.
Aproximou-se o dia da alegria e chegou o tempo da exultação. De muitos lugares foram chamados os irmãos: homens e mulheres do lugar, de acordo com suas posses, prepararam cheios de alegria tochas e archotes para iluminar a noite que tinha iluminado todos os dias e anos com sua brilhante estrela. Por fim, chegou o santo e, vendo tudo preparado, ficou satisfeito. Fizeram um presépio, trouxeram palha, um boi e um burro. Greccio tornou-se uma nova Belém, honrando a simplicidade, louvando a pobreza e recomendando a humildade.
A noite ficou iluminada como o dia e estava deliciosa para os homens e para os animais. O povo foi chegando e se alegrou com o mistério renovado em sua alegria toda nova. O bosque ressoava com as vozes que ecoavam nos morros. Os frades cantavam, dando os devidos louvores ao Senhor e a noite inteira se rejubilava. O santo parou diante do presépio e suspirou, cheio de piedade e de alegria. A missa foi celebrada ali mesmo no presépio, e o sacerdote que a celebrou sentiu uma piedade que jamais experimentara até então.
O santo vestiu dalmática, porque era diácono, e cantou com voz sonora o santo Evangelho. De fato, era “uma voz forte, doce, clara e sonora”, convidando a todos às alegrias eternas. Depois pregou ao povo presente, dizendo coisas maravilhosas sobre o nascimento do Rei pobre e sobre a pequena cidade de Belém. Muitas vezes, -quando queria chamar o Cristo* de Jesus, chamava-o também com muito amor de “menino de Belém”, e pronunciava a palavra “Belém” como o balido de uma ovelha, enchendo a boca com a voz e mais ainda com a doce afeição. Também estalava a língua quando falava “menino de Belém” ou “Jesus”, saboreando a doçura dessas palavras.
Multiplicaram-se nesse lugar os favores do Todo-Poderoso, e um homem de virtude teve uma visão admirável. Pareceu-lhe ver deitado no presépio um bebê dormindo, que acordou quando o santo chegou perto. E essa visão veio muito a propósito, porque o menino Jesus estava de fato dormindo no esquecimento de muitos corações, nos quais, por sua graça e por intermédio de São Francisco, ele ressuscitou e deixou a marca de sua lembrança. Quando terminou a vigília solene, todos voltaram contentes para casa.
Guardaram a palha usada no presépio para que o Senhor curasse os animais, da mesma maneira que tinha multiplicado sua santa misericórdia. De fato, muitos animais que padeciam das mais diversas doenças naquela região comeram daquela palha e tiveram um resultado feliz. Da mesma sorte, homens e mulheres conseguiram a cura das mais variadas doenças.
O lugar do presépio foi consagrado a um templo do Senhor e no próprio lugar da manjedoura construíram um altar em honra de nosso pai Francisco e dedicaram uma igreja, para que, onde os animais já tinham comido o feno, passassem os homens a se alimentar, para salvação do corpo e da alma, com a carne do cordeiro imaculado e não contaminado, Jesus Cristo Nosso Senhor, que se ofereceu por nós com todo o seu inefável amor e vive com o Pai e o Espírito Santo eternamente glorioso por todos os séculos dos séculos. Amém. Aleluia, Aleluia.
Tomás de Celano – Primeiro Livro (Fontes Franciscanas)
Cântico das Criaturas
Quase moribundo, compôs São Francisco o Cântico das criaturas. Até ao fim da vida queria ver o mundo inteiro num estado de exaltação e louvor a Deus. No outono de 1225, enfraquecido pelos estigmas e enfermidades, ele se retirou para São Damião. Quase cego, sozinho numa cabana de palha, em estado febril e atormentado pelos ratos, deixou para a humanidade este canto de amor ao Pai de toda a criação.
A penúltima estrofe, que exalta o perdão e a paz, foi composta em julho de 1226, no palácio episcopal de Assis, para pôr fim a uma desavença entre o bispo e o prefeito da cidade. Estes poucos versos bastaram para impedir a guerra civil. A última estrofe, que acolhe a morte, foi composta no começo de outubro de 1226.
A oração do santo diante do crucifixo de São Damião e o Cântico do Sol são as únicas obras de São Francisco escritas em
italiano antigo e, por isso, são dos mais importantes documentos literários da linguagem popular. Foi nesta língua que ele certamente ditou a maioria de seus escritos, antes que os irmãos versados em letras os traduzissem para a língua comum da época, o latim.
“Na tradição ocidental Francisco de Assis é visto como uma figura exemplar de grande irradiação. Com fina percepção sentia o laço de fraternidade e de sororidade que nos une a todos os seres. Ternamente chama a todos de irmãos e irmãs: o sol, a lua, as formigas e o lobo de Gubbio. As coisas têm coração. Ele sentia seu pulsar e nutria veneração e respeito por todo ser, por menor que fosse. Nas hortas, também as ervas daninhas tinham o seu lugar, pois do seu jeito elas louvam o Criador.
O coração de Francisco significa um estilo de vida, a expressão genial do cuidado, uma prática de confraternização e um renovado encantamento pelo mundo. Recriar esse coração nas pessoas e resgatar a cordialidade nas relações poderá suscitar no mundo atual o mesmo fascínio pela sinfonia do universo e o mesmo cuidado com irmã e mãe Terra como foi paradigmaticamente vivido por São Francisco. ”
Altíssimo, onipotente, bom Senhor,
Teus são o louvor, a glória, a honra
E toda a benção.
Só a ti, Altíssimo, são devidos;
E homem algum é digno
De te mencionar.
Louvado sejas, meu Senhor,
Com todas as tuas criaturas,
Especialmente o Senhor Irmão Sol,
Que clareia o dia
E com sua luz nos alumia.
E ele é belo e radiante
Com grande esplendor:
De ti, Altíssimo é a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã Lua e as Estrelas,
Que no céu formaste claras
E preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Vento,
Pelo ar, ou nublado
Ou sereno, e todo o tempo
Pela qual às tuas criaturas dás sustento.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã Água,
Que é mui útil e humilde
E preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Fogo
Pelo qual iluminas a noite
E ele é belo e jucundo
E vigoroso e forte.
Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a mãe Terra
Que nos sustenta e governa,
E produz frutos diversos
E coloridas flores e ervas.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelos que perdoam por teu amor,
E suportam enfermidades e tribulações.
Bem aventurados os que sustentam a paz,
Que por ti, Altíssimo, serão coroados.
Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a Morte corporal,
Da qual homem algum pode escapar.
Ai dos que morrerem em pecado mortal!
Felizes os que ela achar
Conformes á tua santíssima vontade,
Porque a morte segunda não lhes fará mal!
Louvai e bendizei a meu Senhor,
E dai-lhe graças,
E servi-o com grande humildade
(Leonardo Boff)
Benção de São Francisco
O pequeno pergaminho de 14 x 10 cm, dado por Francisco a Frei Leão, contém dois textos: de um lado a oração Louvores de Deus e do outro a Bênção a Frei Leão, seu fiel companheiro:
O Senhor te abençoe e te guarde,
Mostre a ti o seu rosto e tenha misericórdia de ti.
Volte para ti o seu olhar
e te dê a paz.
Embaixo do escrito, Frei Leão acrescentou de próprio punho e com bela caligrafia em tinta vermelha: “O bem-aventurado Francisco escreveu de próprio punho esta bênção para mim, Frei Leão”.
As palavras da Bênção de São Francisco correspondem, nas cinco primeiras linhas, quase completamente à benção de Aarão do livro dos Números (Nm 6,22-26). Mas o Santo deixa fora duas vezes a palavra “Senhor” (Jahwe-Dominus), que está três vezes no texto bíblico, tríplice repetição que fez os Padres da Igreja verem uma alusão à Trindade:
O Senhor te abençoe…
O Senhor te mostre…
O Senhor volte para ti…
Retomada na liturgia pós-conciliar, ela foi colocada no novo missal como primeira entre as possíveis bênçãos solenes do período “per annum”. Além disso, a leitura de Nm 6,22-26 está nos três ciclos litúrgicos como primeira leitura na festa de 1º de janeiro. Hoje é um bem “recuperado” pela Igreja Católica. A revalorização desta bênção deve então ser muito sentida por todos os que pertencem à família franciscana. Redescobrindo-a e voltando a utilizá-la estaremos fazendo o que fez Francisco ao recuperar uma fórmula litúrgica quase esquecida, considerando-a apta para consolar o amigo na aflição. Usando-a, Francisco descobriu o profundo significado da fórmula e, no modo de usá-la, mostrou que captou precisamente seu sentido original.
As palavras que Francisco acrescentou às bíblico-litúrgicas são poucas, mas importantes, porque são pessoais do Santo: “O Senhor te abençoe, Frei Leão”. Essas palavras foram deslocadas um pouco à direita e escritas de modo a fazer passar a haste vertical da cruz através do nome de Frei Leão. De forma muito simples, Francisco dá a bênção a seu sofrido companheiro. A invocação pessoal mostra a preocupação materna de Francisco por seu fidelíssimo amigo, pai, confessor e secretário. Leão é sacerdote, Francisco apenas diácono: neste caso, é um não-sacerdote que abençoa o sacerdote.
Francisco, ao abençoar, põe-se – e talvez muito conscientemente – na linha dos que, no AT, mediavam a bênção de Javé e na liturgia da Igreja invocavam, em situações especiais, a bênção de Deus sobre uma pessoa ou sobre o povo. Fazendo isso, o Santo põe em prática uma habilitação dada pelo batismo e para a qual tinha sido encarregado como diácono.
Do “Vós” de Deus ao “tu” do irmão
Os Louvores de Deus, como se encontram no frontispício do pergaminho, repetem por mais de trinta vezes a invocação “vós”, e nunca usam a palavra “eu”. Diante da riqueza e da grandeza de Deus, engrandecidas com títulos e invocações sempre renovados, coloca-se como que de lado. Mesmo mudando as palavras, o que sobra é o dom de si ao inalcançável e inefável VÓS.
Na Bênção, em vez disso, Francisco sai dessa imersão mística do Vós divino para se voltar ao tu do irmão. Mesmo nesse caso o eu, do Santo ficou completamente em segundo plano. O que interessa é só o Senhor e seu irmão Leão. No breve texto de bênção repete-se sete vezes o pronome “tu-te”, estendendo assim o seu voltar-se do Vós de Deus para o tu do irmão sofrido e aflito.
Francisco não dá a seu companheiro nenhuma sugestão prática sobre o que tem que fazer; diante de Leão comporta-se de forma discreta, abençoando-o “apenas”. Como na outra parte do pergaminho tinha encaminhado para a grandeza e bondade de Deus, agora só põe Frei Leão sob a bênção do mesmo misericordioso protetor, guarda e defensor, para que Ele volte seu rosto para o irmão e dele tenha misericórdia.
O rosto do Senhor, que iluminou as trevas de Francisco em São Damião, ilumine também a escuridão de Frei Leão. Aquele rosto que, na figura do serafim, tinha marcado em Francisco as feridas do amor, inflame de amor também Frei Leão. Aquele que é “segurança e descanso” dê também a Frei Leão slalom, paz e bem.
O fiel companheiro, desencorajado pela visão da cruz experimentada por Francisco, foi englobado, através da bênção, no encontro que o Santo teve com Cristo. Francisco quer fazê-lo participar daquela graça que lhe foi dada através de sua personalíssima bênção, reforçada com o “Sinal do Tau com a cabeça”.
Saudação da Paz e do Bem
A saudação franciscana de “Paz e Bem” tem sua origem na descoberta e na vocação do envio dos discípulos, que São Francisco descobriu no Evangelho e, que ele colocou na Regra dos Frades Menores – “o modo de ir pelo mundo”. Lucas (10,5) fala na saudação “A paz esteja nesta casa”, e Francisco acrescenta que a saudação deve ser dada a todas as pessoas que os frades encontrarem pelo caminho: “O Senhor vos dê a paz”.
No seu Testamento, Francisco revela que recebeu do Senhor mesmo esta saudação. Portanto, ela faz parte de sua inspiração original de vida: anunciar a paz. Muito antes de São Francisco, o Mestre Rufino (bispo de Assis, na época em que Francisco nasceu), já escrevera um tratado, “De Bono Pacis” – “O Bem da paz” e, que certamente deve ter influenciado a mística da paz na região de Assis. Haviam, então, diferentes formas de saudação da paz, entre elas a de “Paz e Bem”.
A paz interior como fundamento da paz exterior
Na Legenda dos três companheiros (58), São Francisco dá para seus frades, o significado único para a paz:
“A paz que anunciais com a boca, mais deveis tê-la em vossos corações. Ninguém seja por vós provocado à ira ou ao escândalo, mas todos por vossa mansidão sejam levados à paz, a benignidade e à concórdia. Pois é para isso que fomos chamados: para curar os feridos, reanimar os abatidos e trazer de volta os que estão no erro”.
Trata-se da paz do coração que conquistaram. Francisco exorta seus frades a anunciar a paz e a testemunhá-la com doçura, porque este é o único caminho de comunicação para atrair todos os homens para a verdadeira paz, a bondade e a concórdia.
A saudação da paz, como primeira palavra que os frades dirigem aos outros, tem o objetivo de abrir os corações à paz, isto é, à força espiritual interior: a paz interior da bem-aventurança e a paz proclamada e dirigida a todos, constituem uma única e mesma realidade.
O Bem da paz – o “Sumo Bem”
Deus Sumo Bem é a experiência fundamental de Francisco, o ponto de partida de sua espiritualidade. Nela se fundamenta a vida franciscana como resposta de amor, configurando o amado ao Amor. Portanto, “Bem” é Deus-Amor, é a caridade.
Deus, o Sumo Bem, chamou a todos a participarem do seu Ser, não no sentido de “soma de todos os bens divinos”, mas Deus, enquanto “bem único”. Por isso, a atitude típica de São Francisco é o êxtase adorante e a decisão de estar sempre a serviço deste Deus; um serviço que nasce da alegria da gratidão. É a atitude que projeta em Deus a completude de si mesmo, que leva a renúncia a tudo, até à posse de Deus. Francisco descobre neste “vazio”, a presença de Deus, unicamente como “dom”.
E é justamente este o sentido da resposta humana, a da conversão ao Bem, ao “Sumo Bem”: aceitar Deus como centro absoluto da própria existência, e inserir-se no seu projeto tornando-se seu colaborador. Desta experiência nasce a “doçura”, que enche a vida de Francisco, a sua necessidade de entregar tudo a Deus (pobreza), de render-lhe graças e louvá-lo sem cessar. Desta experiência nasce também a confiança de tudo arriscar, sabendo que Deus não o deixará desamparado.
Fonte: site Franciscanos Menores.








